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sábado, 1 de novembro de 2008

Fina Chuva

imagem: Jean Saudek

Notas pré-texto: Este texto não vale a pena ser lido. Mas se o fizer, o faça concentrado(a) e sem música. A não ser que você tenha "All Right", do CD "Med sud I eyrum vid spilum endalaust" do Sigur Rós.

Quantos homens, dentre todos os homens, podem dizer que todo dia quando acordam, beijam a mulher mais bela do mundo? Sinceramente, não sei. Mas quantos homens perdidamente apaixonados existem neste planeta? Quantos deles acordam todo dia ao lado de suas mulheres e as beijam? Provavelmente a resposta é algo em torno disto...

Nos primeiros cinco minutos, da quinta hora, daquela quinta-feira, ele acordou, mas ela ainda dormia. Chovia fininho lá fora, o céu estava cinza, sem distinção entre nuvens e espaço. O vidro da janela à direita da cama estalava levemente com os pingos inconstantes que ali batiam. Não havia ruídos de automóveis, zumbidos de pessoas, ou pássaros cantando. Era só o vento, e a chuva cavando a terra, molhando a grama, hidratando as pedras. Olhou pra ela e alisou seu rosto macio, seus cabelos longos e negros, que cobriam as costas brancas e aveludadas, desenhando caminhos, e exalando o melhor cheiro do mundo, que qualquer um sabe, é o cheiro dos cabelos da mulher que se ama, quando acorda. Ficou lembrando-se de quando foram para a velha casa de praia dos seus avôs; era inverno, e num raio de dois quilômetros só havia areia, água e gaivotas. Os dois estavam deitados em um velho bote, depois da arrebentação, debaixo da chuva fina que também caía aquele dia. Ficavam misturados, ela sobre ele, os dois virados para cima, olhando o céu cinza, igual ao dessa manhã de quinta. Ela envolvida em seus braços, os braços dele recheados por ela. A questão é que ambos tentavam ser um só, uma mesma matéria, um dentro do outro. O bote balançava com o movimento leve da água, como um berço, e eles adormeceram. Quando acordaram já era noite, com o bote na areia, trazido pela água, sabe-se lá como. Caminharam de mãos dadas até perto do casebre, ele ascendeu uma fogueira, ela pegou um vinho. Depois daquilo, a idéia de separarem-se um dia, nunca mais passou por suas cabeças. Levantou-se da cama, foi até a janela que ainda estalava com a fina chuva, olhou para as árvores que balançavam como uma dança, e mergulhou em mais lembranças. Houve uma vez em que caminhou debaixo de um temporal, sem camisa, só de botas e calça jeans. Chegou à praça em que se conheceram, totalmente ensopado e lá ficou, sentado no banquinho verde, de cabeça abaixa. Ela chegou descalça, com um vestido fino de algodão, igualmente molhada, com os cabelos grudados ao corpo, sentou do seu lado, e não disse nada. Cruzou seu braço com o dele, segurando sua mão, e deitou a cabeça em seu ombro. Nenhum dos dois conseguia distinguir as lágrimas, das gotas de chuva, mas o choro era cúmplice, e era único. Haviam brigado por algum motivo, mas naquela quinta, olhando através da janela às arvores da mesma praça chacoalharem, não se lembrava da briga, mas sim daquele momento, sem dúvida alguma, inesquecível. Caminhou até a estante, com diversas fotos deles, e não pode deixar de reparar naquela de moldura transparente, na qual os dois estavam elegantes, com casacos grossos, escuros, cabelos hidratados, peles iridescentes. Adentravam um belo e aconchegante restaurante feito de madeira, com retratos e cartões presos às paredes. Foi do dia em que viajaram à Europa, e abortaram todos os planos antes estabelecidos, simplesmente porque descobriram um antigo vilarejo em Berna, com casas pequeninas e quentinhas, com pequenas lareiras e neve na janela, onde havia um mercadinho próximo, um pequeno restaurante, e alguns parques agradáveis para sentarem juntos. Até hoje o nome deles está talhado na madeira entre o lavabo e a cozinha, no meio de um coraçãozinho, atravessado por uma flecha. Não conheceram Paris. Limpou a poeirinha do porta-retratos, olhou, novamente, para ela, caminhou até seu lado da cama, ajoelhou, segurou suas mãos, abaixou a cabeça sobre elas e chorou um pouco. Dessa vez ele se lembrou do que nunca conseguiu esquecer. Sabia que aquele momento iria chegar, e que já estava bem próximo. Checou o pulso de sua amada com delicadeza, colocou o ouvido no lado esquerdo do peito, sentiu a temperatura fria de seu corpo... Contraiu os lábios como jamais tinha feito, tentando fazê-los parar de tremer, tentando conter as lágrimas que saiam de seus olhos, como gotas de chumbo. Foi ao banheiro, tomou a solução que já havia preparado, deitou-se ao lado dela novamente, cobriu ambos os corpos com aquele que era o melhor edredom, o preferido, e abraçou-a com muito apreço e intensidade. Fechou os olhos, relaxou e voltou a dormir. E dormiram os dois, abraçados, entrelaçados, como havia sido no dia do barco na casa de praia, e como foram todos os dias em que estiveram juntos, ao deitarem-se. Ele, e a mulher mais bela do mundo.

9 comentários:

Cyndy disse...

Lindo.
Triste, mas lindo.

Cyndy disse...

ah, esqueci de perguntar.. seria muito atrevimento por esse texto num post meu? (com o devido crédito, claro!!!)

Lorena disse...

Que lindo! BOm seria se todo fim de um grande amor fosse assim: sem separações, encerrado num dormir eterno e a dois.
Mas não é, né?! Esses detalhes bonitos nao existem, afinal dormir eternamente é só um detalhe visto que todos morrem.
E aaaaaaah! como vc msm disse, nem beijinho de manhã ou ao menos olhar de encantamento tá rolando, minha idealização de amor é muito utópica. Juro q só um olhar de encantamento me satisfaria.

Anônimo disse...

Nossa, perfeito

Ramon de Alencar disse...

...
-Gostei da forma com que introduziste o conto, a narrativa está ótima... e a dose de ultra romantismo, foi bem típico de um texto desta natureza...
Gostei... até me evocou lembranças..

Anônimo disse...

Que texto lindo, e a canção indicada tambem.
Me emocionei muito, como sempre...
Quando você vai publicar o primeiro livro?
=]

Jozieli disse...

Ah Igor, belíssimo. Leibre daquele livro do André Gorz, Carta a D. Não sei se você conhece a história dele, mas em suma basta saber que ano passado ele e a sua mulher, Dorine, se mataram. Há anos ela sofria com uma doença interminável, então quando ela estava quase morrendo, eles cometeram suicídio. Esse ano foi públicado o livro, que nada mais é que a história de vida e de amor deles e tudo mais.
Bom, parabéns, eu adorei.

Anônimo disse...

Lindíssimo. Lágrimas vieram dar olá a meus olhos.

Unknown disse...

caramba, fazia tempo que nao lia uma historia de amor tão intensa quanto essa, a musica ajudou muito.

 
Olhando Pra Grama