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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A Justa



“Nossa, que batom forte!”, pensei, logo em seguida ao primeiro olhar direcionado a ela. Na verdade não era o batom. Ela tinha um rosto abstruso, em que parecia não haver lógica. Quando a gente olha para uma pessoa, mesmo que inconscientemente, chegamos a algumas conclusões: feia, bonita, magra, gorda, preta, amarela, pobre, rica, turista, mendiga, enfim... Particularmente, eu não conseguia chegar a conclusão alguma. Pensando melhor, a idéia a qual mais se aproximava da minha curta imaginação, era mesmo a loucura, emblemática naquele par de esferas; castanhas esferas. Cabelos que jorravam sobre os olhos, como uma cortina, porém, insuficiente para tapá-los. A luz da sala invadia-os, deixando-os mais castanhos, mais misteriosos. Ela, enquanto uma figura inteira, mais idiossincrática ainda. Mas as pernas tremeram mesmo, foi quando, em câmera lenta, ela abriu o primeiro sorriso. Escutei, detalhadamente, como o gralhar de uma maquinaria sem óleo, as robustas mandíbulas realizarem o incrível ato da abertura: um interstício bucal, que sorria, sorria... Nem mesmo um carrasco nazista, com braços grossos e coração curto, arrancar-me-ia, naquele momento, a inesperada verdade: eu estava apaixonado. O retrato vivo das esquinas mais obscuras da minha mente. Ela era diferente.

Minha sina começou quando eu estava com um belo artefato antigo herdado do meu avô, asfixiado pela minha mão direita, e apontado para meu ouvido. Era um revólver de prata, cujo calibre eu nunca soube. Ele costuma ficar em uma caixinha, elegantemente escura, de madeira colonial, com o acabamento feito todo à mão, com muito capricho. Por dentro, todo roxo, há um forro almofadado, onde repousa "Isabela, a Justa", como costumava chamá-la seu João, o falecido dono, pai do meu pai. Junto a ela, cinco munições bronzeadas, das quais, apenas uma, esperava ansiosa dentro do tambor, com as ancas cheias de pólvora, doida pelo acariciar do gatilho.

- Perpétuo, meu amor! Cheguei! Venha aqui, eu trouxe visita!

Não havia hora pior, mas era a verdade: minha mulher chegou, acompanhada de um ser silencioso, que se prostrou ao parapeito de mármore da janela e ali ficou, até que eu chegasse à sala. Coloquei Isabela na parte de trás da minha calça, presa pelo atrito entre a pele e o cinto. Dava até pra sentir o cano longo e frio, todo de prata, roçando em meus fundilhos. Era provisório. Com a cara amarrada, atravessei o corredor de paredes acarpetadas, sentindo os ácaros invadirem minhas narinas, fazendo com que as rugas do meu rosto parecessem ainda mais expressivas, com as caretas. Quando cheguei próximo à mesa de jantar, repousei minhas mãos sobre o descanso da cadeira, e com as pálpebras tapando apenas meio olho, mirei minha mulher e perguntei como quem suspira:

- E então?...

Ela abriu um sorriso, como quem ri de um cachorro correndo atrás do próprio rabo, e perguntou-me com uma irritante surpresa:

- Você não a viu, Perpétuo?! Esta aqui é minha querida amiga! Dafne! – e gargalhou mais alguns segundos, como se aquilo fosse, realmente, engraçado.

Olhei para o lado e lá estava ela, uma mulher estranha. Batom vermelho forte, holografia de uma puta dos anos oitenta. Cabelos quase enterrados nos olhos, pele na maquiagem, e um incrível sorrisinho que parecia uma fita atravessando o rosto: tímido, lábios superiores apertando os inferiores, extremamente enigmático.

- Boa noite, Dafne. – eu disse, meio embasbacado.

Ela abriu a boca, lentamente, e riu de mim, me deixando instável, aturdido, e idiotamente envergonhado. Sentia-me virgem, vendo, pela primeira vez, uma calcinha no corpo de uma moça.

- Ainda é dia, Perpétuo! Não está vendo o sol aqui, através desta linda janela?! – dizia ela, Dafne, explicando, visivelmente, o porquê do sorriso debochado.

Mal sabia ela que não havia como deixar de reparar nos raios de sol, depois de adentrarem, elegantemente, dentro daquelas esferas castanhas. Estava mesmo, completamente, apaixonado. Naquele momento, não havia dúvidas. Meus filhos - um de vinte e oito, outro com trinta e três - já estão fortes e maduros, robustos, com suas casas grandes e esposas chatas. Já servi ao Estado durante toda minha vida; definitivamente, não precisam mais de mim. Todos no fórum, hoje em dia, têm uma mesma e incrível habilidade: ouvir juízes aposentados, fingir que lhes é algo importante, e, logo em seguida, virar as costas, esquecendo qualquer coisa que lhes foi dita. Não precisam de mim? Sou eu quem não precisa deles. Minha mulher é mais jovem e não gosta de mim. Trata-me como um velho, somente um velho. Ri do que digo, acompanha-me em almoços de domingo, e, de resto, torra meu dinheiro em motéis caros, com o moreno que lavava meu carro, nos dias de semana. Que se expludam! Meu desejo, agora, chama-se Dafne, e ela, certamente, não me escapará. Me acompanhará em uma viagem ao redor do mundo, beberá, em minha companhia, os melhores vinhos, comerá do mais delicioso e exótico, fará correr, com mais força, o sangue que ainda há nestas veias. E eu lhe pergunto: Por que não?

Lancei o olhar mais vivo que, no auge dos meus setenta anos, pude arriscar. Eu tinha que ser direto e objetivo, mas sem perder o charme. Passar a mensagem, para que, assim que minha mulher e ela saíssem por aquela porta, não sobrassem dúvidas de que, comigo, ela teria futuro. Se não for pelos meus belos olhos azuis, que seja então pela minha conta bancária. A esta altura, já não me importa...

Perdido em tantos pensamentos, lembrei-me finalmente de sorrir, como um galanteio, quando, então, fui interrompido por sua bela voz:

- Perpétuo?! Você está bem?! – ela perguntou, com um semblante que parecia estranhar-me.

- Ligue não, Dafne, ele é assim mesmo! Mas diga! Diga a notícia! Faça o convite, amiga! – disse, então, minha mulher para Dafne, deixando-me cada vez mais confuso.

- Então, seu Perpétuo, deixe-me falar. Semana que vem, caso-me com Miguel! Foi seu aluno na faculdade, o senhor lembra? Acredita que Miguelzinho, hoje, é juiz, que nem o senhor foi?! Legal, não é?! Então, seu Perpétuo, a minha querida amiga aqui foi convidada para ser madrinha, viu? Veja se arranja um vestido bem bonito pra ela, hein! Não vá me decepcionar! Nem a mim, nem ao Miguelzinho, em! Hehehe!

A porta abriu, depois fechou. As risadas ficaram distantes.

Pude, então, facilmente, concluir: Injusta. A vida é mesmo muito injusta. As duas saíram rindo, pela porta da minha casa. Tenho a certeza de que foram ao shopping, com o meu cartão de crédito, comer gorduras hidrogenadas, as quais meu médico não me deixa nem sentir o cheiro, muito menos desfrutar da maravilhosa textura cremosa, de um sorvete não dietético. A única coisa que meu tato pode sentir, agora, é um cilindro de prata, cheirando a flatulência, com a ponta enroscada nos primeiros pelos do meu traseiro. Parece ironia, mas ele ficou o tempo todo mirando lá embaixo, na parte mais menosprezada do corpo. No entanto, uma das mais importantes. O fim do sistema digestivo, a conclusão de todos os banquetes. Ao voltar a arma para minha cabeça branca, o último gesto deu-me a conclusão, através de duas contrações: a do gatilho, e a do esfíncter.


 
Olhando Pra Grama