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segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Próximo Passo


Certo dia ela abriu os olhos pra sair do escuro, certos olhos fecharam o escuro pra entrar no dia, certos escuros fecharam o dia pra entrar nos olhos. Paralelamente, Eliete, a empregada, abria a persiana, cutucando Lúcia com o espanador de pó.

- Dona Lúcia, ta tudo bem?...

-Tudo bem, Eliete, foi só um sonho...

Eliete leu na revista que os sonhos podem nos dizer coisas, muito além dos números premiados do jogo do bicho. Leu que temos uma tal de “percepção”, que capta coisas sem nos darmos conta.

- Mas foi tão estranho, Eliete... Eu estava deitada em minha cama, no meio da calçada. A cidade estava totalmente vazia, quando, de repente, o silêncio foi quebrado por um desfile, que vinha em minha direção. Todos vestidos com roupas lindas, exóticas, com carros alegóricos gigantescos...

Eliete sentou-se na pequena poltrona, que ficava ao lado da cama. Juntou as pernas, joelho com joelho, repousou o espanador sobre os mesmos, subiu os óculos para o topo do entre olhos, e disse serenamente:

- Conte-me mais, Dona Lúcia...

Lúcia desfaleceu-se novamente, como se tivesse resolvido voltar ao sono. Reclinou a cabeça sobre o travesseiro e continuou:

- Quando reparei melhor nos carros, cada um deles continha algo que sempre quis. O primeiro tinha uma casa muito bonita, com muitas pessoas dentro, aparentemente amigos, com clima de felicidade e aconchego...

- Bom... – disse Eliete, agora apoiando a cabeça sobre as pontas dos dedos polegar e indicador. Lúcia deslizou os cinco dedos de sua mão direita, como um pente, para dentro de seus cachos loiros, e, depois de um suspiro profundo e inquietante, prosseguiu novamente:

- O segundo carro... Não sei ao certo, mas pareciam-me pessoas sentadas num sofá de uma sala... Não consegui ver seus rostos, mas o estranho é que senti que os amava muito. Havia um lugar vazio ao lado do mais alto deles... Já o terceiro carro foi o mais estranho. Sobre um altar, um enorme coração vermelho, flutuando, preso a uma corda, feito um balão. Quando este passou frente à minha cama, na qual, apesar de tão estranha manifestação, eu ainda continuava deitada, parou com todo o resto do desfile. Do carro, desceu um senhor com uma longa barba branca, e olhos indiscutivelmente sábios. Ele me disse: “Lúcia, tudo isso é seu. Você merece, não discuto. Mas sabe, Lúcia? Nada na vida é assim tão fácil... Você tem que saber pegá-los, querida”. Então, sem muita empolgação, levantei-me lentamente, fiquei sentada, de pernas cruzadas na cama, e olhando pra ele, perguntei: “Senhor... Basicamente o que tenho feito a vida inteira, é correr atrás de tudo isso. Caso saiba o caminho, seria boa idéia, e de muita gentileza, que me falasse agora. Por favor, algo a dizer?...”. Então e velhinho de roupas antigas – belas roupas, Eliete, mas antigas -, retirou do carro uma caixa e entregou com carinho em minhas mãos. “Lúcia, tudo é uma questão de paciência, e, também, de uma empírica sapiência... Tens que saber que o que passou, já passou... Que o que não aconteceu, acredite, filha, não tinha que acontecer. O lamento tem seu valor, mas tens que decidir, querida jovem, o que vem agora. A vida está no sentido horário.”.

A essa hora, Eliete, que antes estivera com toda uma pose e formalidades de ofício, encontrava-se, agora, com os olhos bem arregalados, ansiosos pelas próximas palavras. Lúcia virou-se para janela, onde a visão não encontrava Eliete, e perguntou:

- Estou te incomodando, querida?

Eliete realinhou-se na hora, pigarreou, esticou a coluna e projetou com voz sábia e condescendente:

- Não, Dona Lúcia, prossiga, por favor.

Então Lúcia fechou os olhos, trouxe o edredom para mais perto do pescoço e disse:

- Enfim... Dentro da caixa havia um celular moderno, que contrastava muito com o clima daquilo tudo... Quando o liguei, havia somente o número do Márcio. Sabe, Eliete, ele já não me liga há semanas... Gosto dele, mas sei que não vai dar em nada... A gente quer se proteger, e tudo mais, porém acaba sempre fazendo a coisa errada, e perdendo tempo com copos furados, não é mesmo?... Como de costume, era isso mesmo o que eu iria fazer. Quando aproximei meu polegar do botão de chamada, estava de olhos fechados, fluindo pequenas lágrimas, de coração apertado, sabendo que não deveria fazer aquilo... De repente escutei um barulho estranho, de vários passos e movimentos, abri os olhos, e todas as pessoas do desfile, todos em minha volta, olhando-me fixamente, alguns em janelas de prédios, outros em monumentos, outros pendurados em postes e árvores, e todo o resto de pé na rua, e um clima estranhíssimo de expectativa! Olhei para o celular, olhei para eles, levantei-me e fiz silêncio por um minuto.

- E então, Dona Lúcia?! – perguntou Eliete, já em pé e de olhos quase caindo para fora do rosto.

- Fiz o contrário. Larguei o celular na cama, desci da mesma, e enquanto todos abriam espaço para a minha passagem, e aplaudiam-me fervorosamente, caminhei rumo ao horizonte, com a certeza de que estava, realmente, satisfeita... As pessoas sumiram, o desfile também, e só o que ficou foi um relógio em meu pulso, sem nenhum de seus ponteiros...

Nessa hora Lúcia virou-se novamente, sentou-se à beira da cama, olhou para Eliete, e recortou um amistoso sorriso em seu rosto.

- E então, Eliete, o que você acha? Piração, né? Hahaha!

Eliete, um pouco desconcertada, riu-se toda, olhando para os lados. Então, relaxando os ombros, falou:

- Ai Dona Lúcia, sei não... Mas se for pra jogar no bicho, acho que a senhora deveria jogar na águia, viu...


4 comentários:

Mariana disse...

Se a vida está em sentido horário e seu relógio de pulso nao tem ponteiros... vc tá evitando viver a propria vida...

Avise a Lúcia... hehehehe

Adorei o texto... fantástico!

bjs

Mayara disse...

ah, muito bom.

Anônimo disse...

huahauhauhau

adorei essa Eliete...

po... lembra dos meus sonhos bizarros... adorei mesmo esse aki

bjus teh mais

*Raíssa disse...

Concordo com a Mariana acima: Lúcia está evitando viver a própria vida, que tanto deseja. Ela pode, mas talvez tenha tanto medo de se decepcionar que desiste de fazer isso ou aquilo para tal. Assim, muitas vezes, passa a pensar que sua vida está andando em sentido anti-horário. E não é só com a Lúcia que isso acontece.

Muito legal o conto!

Beijos

 
Olhando Pra Grama