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sábado, 9 de abril de 2011

Francisco Solidão

Clarice ouve o clic do isqueiro, o desatarraxar da tampa da garrafa d´água, o toque do copo na pia e corre logo à cozinha. Francisco Solidão acordou ainda antes do sol nascer e se prepara para ir à aula. Clarice lambe seus pés, late empolgada, mas Francisco mal percebe sua presença. Mochila, sanduíche, chave, celular, porta do apartamento, portão do prédio, ponto de ônibus, moedas contadas. Uma hora depois, Francisco está no centro da cidade fumando outro cigarro, quarenta minutos antes do professor chegar à sala. Sobe, senta, limpa os óculos, abre um livro e entra em estado de leitura. Pessoas começam a chegar, dão discretos “bom-dias” e Francisco responde mais com a mente do que com a boca. O primeiro presidente do Brasil foi Marechal Deodoro, o segundo Marechal Floriano, o terceiro Prudente de Morais. A marinha, na época da proclamação, ainda tinha uma tendência à monarquia. São Paulo ainda não era tão grande. O Rio tinha outra cara. O professor chega, Francisco fecha o livro, ajeita os óculos, pega papel e caneta: a Constituição está acima de todas as leis, a sanção exige validade, vigência e eficácia, a norma está em forma imperativa. Francisco ouve o som do ar-condicionado, a voz do professor, canetas arranhando papeis, bocejos, borrachas, bochichos... Pega o celular e lê três mensagens antigas, as últimas que havia recebido. Olha as horas, a data, o tempo lá fora. Lembra dos fins de semana da adolescência, quando saia com amigos para descobrir a noite. Do primeiro copo de cerveja, do primeiro cigarro, da primeira moça que conquistou com as palavras. Lembra dos pulos na catraca do ônibus para economizar a mesada, os vinhos baratos, sentado na grama da Lapa, discutindo Karl Marx - Francisco foi ler Marx há pouco tempo, e riu quando se tocou de quanta besteira já disse aos gritos entre amigos lá na grama. Começa a chamada, data da prova, “até-amanhãs”, e Francisco está no ônibus. Uma hora depois está em casa almoçando, depois estudando, depois checando e-mails. À noite pensa no futuro. Em quando for deixar de morar com a tia de favor, em quando prestar o concurso que tanto almeja, em quando tiver dinheiro para sair nos fins de semana, redescobrindo a noite, tomando vinhos caros na mesa de um restaurante, fumando charutos, discutindo inflamadamente o Adam Smith. Francisco Solidão sente um aperto no peito, uma vontade de ficar encolhido na ponta esquerda da cama. Pensa em como seria se arranjasse um emprego qualquer, se morasse em um quartinho pequeno no centro, se comesse miojo e tomasse vinho barato na grama da Lapa... Francisco olha o futuro brilhante com o olho direito, e o futuro doce com o olho esquerdo. A mente vai às pessoas que o cercam, que vez por outra o observam. Francisco se sente cansado, sozinho, perdido. Francisco dorme, acorda, acende o cigarro, toma água, olha Clarice latindo. Pega o ônibus, fuma no centro, sobe e abre o livro: Afonso Pena morreu antes de terminar o mandato, Nilo Peçanha assumiu e saiu em pouco tempo. Marechal Hermes pegou a presidência, o Brasil foi à guerra e voltou, Epitácio Pessoa foi à Europa de navio. O professor chega, a elasticidade-preço da demanda varia na relevância do produto, o consumidor racional pensa na margem... E Francisco Solidão volta para casa, almoça, estuda, checa os e-mails, e continua pensando no presente, no passado e no futuro.

2 comentários:

junior moura disse...

você Lessa, você.

T. disse...

Coitado desse Francisco, né? Se ao menos ele conseguisse escrever como você, acho que o presente dele já estaria garantido... (ah, o futuro não pode ter garantia, não? Bom, acho que ele se esqueceu disso, momentaneamente...)

 
Olhando Pra Grama