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sábado, 25 de junho de 2011

Procurar Sinédoque


            O escuro desapareceu do meio para as bordas: era eu abrindo os olhos e enxergando o teto. Já li muito Kafka para me assustar com o fato de ter me transformado enquanto dormia. Eu ainda era o mesmo, mas toda a minha juventude havia ido embora e a minha pele estava consideravelmente flácida. Preferi não levantar e esperar, para que o sonho acabasse, mas estava muito curioso a respeito da minha fisionomia enquanto idoso. Caminhei até o espelho, acendi uma luminária próxima e me lembrei de ter ouvido dizer que não é possível ver um rosto em um sonho, se o mesmo já não tiver sido visto enquanto acordado. E, por conseqüência, me lembrei da moça pela qual me apaixonei aos treze anos, dormindo, e de que quando acordei só me lembrava dos seus olhos, e da maquiagem ao redor deles. Forcei como louco, mas foi em vão: a tal mulher da minha vida ainda não havia cruzado comigo em estado consciente.

            Deus sentou-se comigo em um boteco no centro da cidade e me pagou um café com leite. Disse que me dar a bebida não era nenhum milagre, mas que o fato de cercar duzentos mililitros com um vidro e trocar isso por moedas de valor imaginário já significava um grande avanço para nossa espécie. Perguntei-Lhe por que estou vivo e porque sinto vontade de não estar com tanta freqüência e ele disse que moedas de valor imaginário já eram um grande avanço para nossa espécie. Voltei à minha imagem, frente ao espelho, próximo à luminária.

            Minhas barbas eram brancas com alguns poucos fios pretos. Não importava o quanto tentasse definir minha fisionomia, não conseguia ver mais do que uma silueta escura com uma barba branca. Isso me incomodava, pois queria me ver já velho, mas só o fato de saber que um dia teria espessos pelos no rosto, pagava minha caminhada até o espelho.

            Dostoievski e Machado de Assis discutiam alguma coisa na confeitaria Colombo. Os interrompi para dizer que sempre achei que tinham algo em comum em suas escritas. Os dois me olharam e, por puro reflexo, pedi desculpas. Quando me lembrei de que não teria dinheiro para pagar a conta, corri à porta do estabelecimento. Por sorte, ainda tive tempo de gritar: Machado, leia O Eterno Marido!

            Já de volta à cama, aos meus prováveis setenta anos, não conseguia acomodar-me sabendo que estava ao fim de minha vida, ainda dormindo só, sem ter achado quem ou o que procurava. Levantei-me, fui à varanda e me joguei do septuagésimo andar. Acordei sentado ao lado de Deus, em um jogo do Flamengo no Maracanã. Disse a Ele que eu poderia estar apaixonado, mas que a vida me dava medo. Ele disse que as moedas com valor imaginário já eram um grande avanço para nossa espécie e que era melhor pensar no resto como um bom milagre. Perguntei se havia lido Sartre, mas Ele respondeu em francês. O Flamengo ganhou de dois a zero.

            Cinco horas da manhã, o despertador e eu acordados. Fui pensativo no ônibus, rumo aos meus afazeres. Na volta parei em um cinema e senti aquela velha vontade de viver por apenas duas horas e duas dimensões, cristalizado em sais de prata, enrolado em uma lata antiga, em um roteiro surrealista.

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Olhando Pra Grama