Anúncios Google

domingo, 20 de julho de 2008

Anedonia


imagem: Olaf Martens.

Notas pré-texto:

“(...) o homem é um ser inconstante e pouco honesto e, talvez, à semelhança do jogador de xadrez, goste apenas do processo de procurar atingir um objetivo, e não do objetivo em si.”

(Notas do Subsolo – Dostoiévski; tradução do francês)


“Admito: o homem é, acima de tudo, um animal que constrói, condenado a buscar conscientemente um objetivo e exercer a arte da engenharia, ou seja, a abrir caminho para si mesmo incessantemente e eternamente, não importando aonde esse caminho o leve. Mas eis que, vez por outra, ele tem vontade de se desviar para um lado, talvez precisamente porque ele esteja condenado a abrir esse caminho, e também porque, por mais idiota que geralmente seja o homem direto, de ação, às vezes ele pensa que aquele caminho, na realidade, quase sempre leva não importa aonde, o mais importante não é para onde ele leva, e sim que ele continue a levar, afim de que a criança bem-comportada, fazendo pouco da arte da engenharia, não se entregue à ociosidade destrutiva, que, como é sabido, é a mãe de todos os vícios. O homem gosta de criar e de abrir caminhos, isto é indiscutível.”

(Notas do Subsolo – Dostoiévski; tradução do francês, cap. 9)

____________________________________

Era sábado e nós estávamos sentados num banco de cimento, na orla da praia. Se houvesse uma foto daquele momento, qualquer um diria: “estava frio”, mas, na verdade, aquela foi a noite mais quente da estação. Usávamos casaco por idealismo – isso não requer nenhuma explicação. Ela não tomou seus remédios, aliás, já não os tomava havia uma semana. Foi parecido com uma experiência paranormal, mas eu juro: cinco ou seis segundos antes, eu já sabia que ela daria aquele profundo suspiro; e ela deu. Sem precisar perguntar o por que, já mirou os olhos nas maçãs do meu rosto e, com as pálpebras no meio do globo, e também com o rosto bem relaxado, foi logo soltando as palavras:

- É que eu sinto que já pensei em todos os caminhos que a vida pode tomar e todos os objetivos aos quais ela chega. Já refleti sobre tudo isso, racionalmente e sentimentalmente, mesmo antes de estar perto de fazer qualquer dessas coisas. Agora, quando chega a hora de viver qualquer vivência – e a hora disso é toda hora -, já me sinto cansada, entediada... Eu sei que é um saco, mas estou assim “com preguiça de viver”.

Quando terminou de falar, deitou no meu colo e ficou ali desfalecida, como alguém que anda dormindo sem ter sono. É sabido que, como Dostoiévski já dissera, a coisa de dar movimento à vida, para muitos consiste na finalidade do próprio movimento em si, até desprezando um pouco o objetivo final das investidas. O problema dela é que já se cansou do corredor, antes mesmo de chegar ao quarto. Sendo assim, desistiu até do quarto, com a cama macia e o ar-condicionado; dormiu no chão da sala mesmo, nem deitou no sofá. Agora vejam os senhores que lêem este texto e até mesmo o senhor, Dostoiévki, que muito respeito e daria tudo por uma leve semelhança e que, também, se estiver com algum tempo vago, deve estar com os cinco dedos nas longas barbas, em alguma dimensão não tão distante, dando uma olhada neste inconseqüente que aqui escreve e que tem como maior inspiração a própria ignorância; veja: Quando acariciei os cabelos dela, já com o corpo todo mole e influenciado, disse, apenas, algo como:

- É Verônica, entendo o que você me fala. Na verdade, sinto-me, muitas vezes, exatamente assim. Passei muito tempo pensando, planejando, almejando, idealizando e, agora, justo nesta hora – que é a vida -, não quero atravessar a rua e comer no Pigalle, não quero morar ali no Sofitel, não quero tirar a roupa e pular na água... Minha maior pretensão nessa vida, ao menos para o momento, é acariciar seus cabelos até sentirmos sono e então irmos para nossa cama, onde poderemos, sem culpa, tirar estes casacos.

De súbito os olhos dela energizaram, ela me agarrou, me deitou no banco e começou a beijar-me loucamente e, no fim das contas, nós tiramos os casacos ali mesmo. Descobrimos que nem pra tudo na vida temos preguiça, mas que esta é mesmo a mãe de todos os vícios; amém.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Mulheres



Como a quebra do contrato entre a pele, os pelos e a cera quente – rasgh! -, com barulho, dor e força, meus olhos se abriram nesta madrugada; rompendo as remelas e o sono, minhas pálpebras descolaram feito lixa e o que sobrou foi minha visão mirando o teto, certificando-me de que tudo aquilo fora realmente um sonho. Sim, senhores, um sonho: Estava eu passeando no centro da cidade, num dia calmo, como tarde de Domingo; de clima ameno, de céu ameno, de asfalto e alma, também amenos - o que mais me toca no centro da cidade, às tardes de Domingo, é o espaço aberto e as calçadas amplas em contraste com as poucas pessoas que, em dias assim, resolvem desfrutar de uma caminhada... Como ia dizendo, estava lá eu andando, calmo, criando meu próprio fluxo, sozinho por mais de uma hora; então finalmente chego a um dos meus destinos favoritos: a escadaria do Teatro Municipal. Ao olhar em volta, reparei que todas as pessoas que ali andavam, tinham o mesmo corte de cabelo, o mesmo ritmo nos passos, os mesmos vestidos até o joelho, as mesmas belezas, ainda que tão diferentes umas das outras. Vestidos? - É neste ponto que eu queria chegar: eram todas mulheres. Só havia mulheres na cidade, todas em uma só cadência, respeitando às mesmas notas, todas regidas por um só maestro. Ao erguer, rapidamente, meus membros superiores para o céu, somente com o intuito, sincero, de agradecer a Deus por um momento tão valioso, percebi, concomitante com meu movimento, o movimento de todas elas: sim! O maestro era eu! Estava impressionado, eu era feliz. Decidi que regeria minha favorita; tocaria Bach! Prelúdio da Suite n° 3, a Sexta Obra! – E assim o fiz; eu tocava! Todas elas andando na praça, como uma dança num fim de tarde. Todas com seus poderes, encantos e vaginas. Muito mais do que sexo: Vaginas. Cada mulher uma célula de arte tão rara, tão única, que se expressa como toda obra ímpar: imprevisível, improvável, impressionante; infinita. Nada, além da mais pura alegria, poderia ser combustível para movimentos tão exultantes de minhas mãos, de meus braços, de meu corpo, de minha alma. Cada vez mais agitado, regi aquela orquestra, aproximando-me melancolicamente do final da obra. Realmente não sabia, mas meu coração pode prever os futuros minutos... Ao acabar a música, todas as mulheres, uma após a outra, transubstanciaram-se em fumaça – Sublimação? Não sei até que ponto estes avatares são sólidos. Como barulho de chuva, só pude escutar seus óculos, brincos, colares, vestidos, todos se soltando no chão após o sumiço de suas donas. Como um louco, corri atrás de cada uma, remexi o resto de suas roupas, cheirando-as, olhando para o céu, tentando entender, mas não havia explicação. A minha volta, agora, só havia vazio, vento, sopro de vento, assobios... Cabisbaixo, andei por toda São João e, já lá no final, bem cansado, pude então constatar: Sem elas, não adianta; não há poesia. Sem poesia, não adianta; não existe viver e achar graça. Sendo assim, neste momento não havia por que andar, viver ou esperar... E a dor nos olhos, o ardor, as remelas... Graças a Deus, agora estou vendo o teto. Ele me cobre até o pescoço, afana minha cabeça e diz: Calma; apesar do susto, tudo isso fora, realmente, apenas um sonho. Meu fiel companheiro, o teto do meu quarto...


Imagem: Olaf Martens.
 
Olhando Pra Grama