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sexta-feira, 22 de agosto de 2008

A Chama Esconde-se nas Esquinas da Rotina


imagem: Here Comes The Flood - Rob Gonsalves

Isso foi a dois anos, no Rio de Janeiro, dentro de um ônibus laranja, 433, que passava pela Doutor Satamine, num dia bem quente, como costuma ser o verão carioca nos bairros feitos de asfalto. O sol marcava, mais ou menos, uma da tarde, e a única coisa que separava os raios de luz da pele morena daquele senhor de barba grisalha, semblante humilde, olhando pro chão, era uma janela fina de acrílico ou vidro, criando um pequeno efeito estufa, que aquecia cada vez mais suas costas, empapando a camisa branca e surrada, criando todo o desconforto, não raro, do homem que, por direito, não paga passagem por já estar velho, e senta-se lá atrás, no fundo. Todo mundo chama a máquina de “lata de sardinha”, mas a verdade é que, nas latas de sardinha, há um líquido, um óleo, eu acho, e espaço suficiente para todas elas. No caso do ônibus, nem ar passa, e as pessoas, todas, se roçam, se cheiram, se sentem e se irritam, uns com os outros, pelo desconforto causado, não pelos passageiros, mas pela sensível e humana, para não dizer fascista, organização do transporte público na cidade. Já o tal senhor gozava do pequeno privilégio de estar sentado, mas não menos desconfortável, com a ponta dos dedos da mão direita nos olhos fechados, franzindo as sobrancelhas, com a cabeça abaixada, e, com a mão esquerda, protegendo um grande saco preto, cheio de latinhas amassadas, prontas para transformarem-se em alguns centavos numa empresa de reciclagem qualquer. Embora houvesse motivo, a cabeça abaixada não estava assim por causa da sauna inoportuna, mas sim por motivos religiosos: ele estava fazendo uma oração; “me dê comida, casa, saúde, latinhas, emprego, e obrigado senhor”, essas coisas que, provavelmente, os lábios rachados encenavam sem som. Ele estava, como diria mais à frente, “fazendo uma prece”. Foi quando o ônibus reduziu a velocidade, parou no ponto da Praça Afonso Pena e soltou aquele barulho típico: “pichiiiii”. As portas abriam-se. Um ou outro desceu, um ou outro subiu, tudo com muita dificuldade, pois é difícil andar onde nem o chão está mais acessível. Em algo como uns quinze segundos depois, as portas fecharam e lá estava o 433, retomando o caminho, ganhando a rua, se não fosse por um imprevisto, um algo abafado, indesejável, algo que irrita o piloto: o velhinho soltava, com dificuldade, uns “peraí motorista! Meu ponto era esse!”, sem muito efeito, pois a máquina laranja continuava a ganhar seu destino. “Me desculpe motorista, eu estava fazendo uma prece, não notei o ponto, desculpe, deixe-me descer!”, mas o efeito era pouco. Ao menos no que tange o motorista, pois o primeiro soco foi no teto, depois mais uns nos vidros e, então, um monte de gritos: “peraí porra! Deixa o senhor descer!”, “pisa no freio, filho da puta!”, e uns comentários em meio tom: “nem parece que também é do povo, olha”, “nem os idosos se respeita mais, onde vamos parar, onde, me diz?!”. A questão é que um milagre aconteceu depois da manifestação. Dentro daquele ônibus, absolutamente lotado, abriu-se, espantosamente, uns dois metros quadrados, que iam, como um tapete vermelho, da cadeira em que o senhor estava sentado, às portas, já abertas, do 433. Mesmo suado, até fendendo ele estava, várias mãos e braços puseram o velho, com zelo e delicadeza, para fora do ônibus. Ao fundo alguns: “vá em paz!”, “Deus te abençoe!”, e um gás invisível que colocava sorrisos e olhos úmidos nos que ali ficaram, até as portas fecharem-se novamente, as rodas voltarem a tomar seu peculiar trabalho de girar para sempre, até onde ainda há pontos, paradas, destinos, pessoas, e a incrível satisfação, que nem mesmo os nefastos demônios explicam, da felicidade que é dar a própria mão para quem precisa dela, e assim, sentir-se parte de um imenso organismo, incessante, que nunca pára enquanto ainda existe boa vontade, empatia, camaradagem, tapinha nas costas, abraços e olhos que olham nos olhos, pelo simples fato de saber-se humano, como todos os outros humanos.

16 comentários:

Amanda Marques disse...

texto mto bom!
e a fotoo? me amarrei!
rsrs

=DD
Bom Final de Semana!

gisellepitty disse...

aaah, os humanos: Seres tão esquisitos, instáveis, enfim...não vou entrar nesse mérito. Aqui onde eu moro, se acontece um negócio desses o povo rreclama dizendo: - Olha que folgado, fica dormindo e quer que o motorista pare em frente à casa dele..."folgado"...rsrsrs

E ai...ainda sem tempo?

Bjs. Boa Noite

*Raíssa disse...

Já peguei muito esse ônibus, por isso pude imaginar bem a cena. É impressionante como você conseguiu transformar uma cena cotidiana tão normal em algo tão belo e humano!

Ontem peguei um ônibus pra ir à faculdade e uma mulher do meu lado não parava de fazer o gesto de 'em nome do pai, do filho e do espírito santo', acho que de 5 em 5 minutos. Lembrei-me disso com o seu texto.

Quanto às suas indicações, não gosto de Amy Winehouse, acho suas músicas e sua voz muito chatas. Mas as outras bandas procurarei escutar. :)

Beijos!

Monalisa Marques disse...

Talvez o líquido da lata de sardinha seja o acúmulo do suor delas.
Se ninguém saísse do ônibus, e se não houvesse portas ou janelas, os suores se acumulariam e o 433 virasse uma grande lata de sardinhas superlotada que, depois de alguns minutos, certamente explodiria e não seria comprada por ninguém.
Talvez por algum senhor catador de latas. Ou não.

Adorei seu comentário.

E cara, que foto super legal. Ainda junto um monte de gente pra fazer isso na vida real, viu? :P

Mariana disse...

só abriram espaço pq ele disse que estava fazendo uma prece.....

rsrsrsrsbjs

Cyndy disse...

amei o texto. (como sempre, né?)

já presenciei essa cena várias vezes, mas lendo.. tu conseguiste transformar em algo muito muito massa.. eh algo comum, né? mas da maneira como tu escreveste, não!


(ah.. qto ao teu comentario.. se nada der certo viro hippie mesmo! uahsuah)

:*

Camila disse...

Que texto mais lindoooooooo
NÃO TENHO O QUE FALAR! =)

BEIJO

Luifel disse...

É engraçado como as pessoas tem uma reaçao diante de alguma ligçao com o divino e como o divino de fato transfigura as pessoas


Abçáo!

Tatah Marley's Confissões disse...

me mastigou ??
me comeu quase vei, foi horrivel!

HSUIAHUSIHAUISHIHSAUI

é engraçado como não se respeitam nem os idosos mais hoje em dia né..
amei o texto!

Mayara disse...

Passei por algo parecido hoje. No caso, com uma cega. Boa noite

gisellepitty disse...

Escrevi algo no meu blog que gostaria que vc lesse...quem sabe não te dá idéias pra uma crônica.

Bjs...não nos deixe sem crônicas please!!!!

gisellepitty disse...

Ai...esqueci...o título do post é:

Leia e esqueça que leu, ou não!

Anônimo disse...

"É difícil falar sobre milagres.
Ou você acredita neles,
ou não.Eu acredito"

Uso das palavras de Will Eisner para afirmar as minhas.

Texto sensível, com belos detalhes( até porque são poucas as pessoas que sabem descrever-com minuciosidade- o que veêm.Com sensibilidade).

Gostei de como você escreve.Não sei, mas vejo pelos seus textos uma ternura, que nunca olhei de fato, no seu olhar.


Ah, não me conheces(antes que se pergunte quem é =)

Cadeira da varanda disse...

Mto bom tb !
Oiginalissimo!

joaofalamerda disse...

e aee cara
venho comentar o texto do msn. hueuhe
CARA , vou começar falando que eu gostei mt do texto , ri e fiquei totalmente preso a leitura.
achei que ficou mto bem escrito , não tenho nada pra criticar sobre as abordagens dos acontecimentos , não ficou cansativ e nem chato.
namoral , ta um texto grande q n parece q é grande..
MAS tb lhe digo que: eu sou suspeita pra falar desse texto..
hueuhehue
gostei mto de como vc fez a "rotina" que qualquer escreveria deixando chata , maneira..( mesmo eu sendo suspeito )uheuhe
Po me veio na cabeça , que como o piru escrvia musicas do forfun , como a clarisse lispector conversava atravez do livro , vc escreveu esse texto ..
Boto mta fé em vc cara , todo texto q tu manda eu fico vendo se vai ser legal ou não , pra ver se tu tem a "estrela" sakoé??
e cara não e de hj que eu faço isso... mas depois de ler esse texto , eu boto mnha mão no fogo..
aaaa
lembrei oq eu queria falar... hueuhe
eu tava com a impressão q vc só conseguia escrever sobre relação de homem e mulher, e to vendo q vc é escritor , que pega o fosco e da brilho.. hueuhe
vlw cara..
e os fanzines como vão??

abraço

Eulália disse...

Chorei. Chorei.
Muita sensibilidade.
Beijos.

 
Olhando Pra Grama